quinta-feira, 28 de outubro de 2010



Não se preocupe, criança – disse a mãe ajeitando-a no colo – essas preocupações irão passar.
Pousou a mão sobre seu peito, sentindo o pequeno coração bater, corajoso. Ela lhe mirava com os grandes olhos amendoados, curiosos. Sabia que, mais breve do que seria capaz de perceber, estes olhos infantis virariam cansados e opacos, como os seus agora eram.
-Logo você não se importará mais com isto.

E embalou-a ao sono.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

bom dia




A vida inteira, neste instante, parece resumir-se ao farfalhar das árvores,
Suave
O pássaro congela o vôo e observa
Texturas e cores a percorrer a abóboda celeste
Óbliqua, a luz matutina toca minha face, em um convite ao dia
Da janela, promessas em cantos
Quantos estarão a mirar o mesmo horizonte?
Em um suspiro, uma última vez: toda a vida parece conter-se em uma gota de orvalho.

Persistente relógio, que não pode ser enganado,
Volta a correr; o mundo dos homens acorda
Passos apressados em caminhos opostos
Sons estridentes competem no ar
Ecoa o choro, alto,
Que clama pelo que não há de vir
Do alto, as nuvens descem, em poeira, à terra
A vida não é o que parece -
É o que ela é.

sábado, 23 de outubro de 2010

meias-palavras



Remexeu-se na cadeira, inquieta.

-Tu tá estranha.

Ela deu de ombros e encolheu-se dentro da camiseta para se aquecer, o tecido cheirava a sono.

-Sério, tá mesmo.

-Eu sou estranha, tu é estranho, isso de eu e tu é estranho, o mundo é estranho.

- Não acha que tu vai conseguir mudar de assunto.

Ela tirou os olhos do chão para pousá-los no rosto à sua frente e riu nervosa: tinha sido descoberta.

- É só que..que...

As palavras estavam lá, mas a claridade do dia a intimidava. Fechou os olhos e começou a falar antes que tivesse uma chance de ser interrompida.

- Sabe que couve-flor foi algo que eu sempre gostei: sem tempero; ou na salada, talvez na massa, melhor de tudo é quente depois de feita, mas vai até mesmo crua. Mas daí tem brócolis, que eu olho e acho que gosto, sempre me dá vontade de provar, mas vai saber entende?E não tem como voltar no tempo depois, é o tipo de coisa que não tem como fingir que não aconteceu- ela buscou rápido por folego e concluiu - Acho que seria uma traição com a couve-flor trocá-la por algo incerto que eu nem sei se funcionaria.

Céus, como ela consegue complicar tanto; ele pensou divertindo-se. Um silêncio constrastante pairava. Nunca uma cadeira foi tão desconfortável, ela respirou fundo novamante:

-Sim, tu não concorda? Fiquei em duvida de te falar porque talvez não devesse e seja desnecessário, do tipo, é só salada sabe... Mas, eu ao menos, acho que se trata de questao que deve ser levada com seried..

Os dedos dele calaram seus lábios e uma expressão de criança emburrada tomou lugar no rosto dela, para depois transformar-se em vergonha.

-Acho que as vezes eu falo demais. Por favor, faz eu parar de me constranger com besteiras e fala algo.

-Eu gosto de brócolis.

Falavam a mesma língua.

domingo, 17 de outubro de 2010

under my skin

Pele sobre pele. Pele sob pele. Pele que foi feita para se juntar com outra pele. Que sua, gruda e retorce. Pele que, depois, tímida, refletindo a fina luz que entra pelas persianas, cansada se recolhe; tremula receosa de algum olhar sobre si. Como se nada tivesse ali tomado lugar, agora uma tela em branco - pálida e arisca. Pele que me esconde, que te limita. É cárcere vivo, respirando meu ar, pulsando meu sangue, matéria inseparável que separa um de todos os outros.


Mas também, que alisa e, quando novamente em par, aquece. Se encontrada, esquiva; se re-encontrada, guia. E por esses breves instantes, contrariando todas as regras, funde-se à outra.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

tarde chuvosa



Do lado de lá da janela, a chuva bate, sem preocupar-se. Aqui dentro, eu, trancada, ardo sem ver.

Como em uma sinfonia do acaso: minha respiração a subir, as gotas a descer. Alheias uma à outra, solitárias, porém, a formar um único compasso.

Ela rápida, eu atordoada; ela muda, minha voz falha. Rasga o céu nublado um trovão, meu grito abafado, com a ponta dos dedos trilho a cicatriz que deixou sobre a minha pele.

Do alto, mais uma gotícula cai e enquanto ela viaja pelo ar, em uma queda sem rumo, meu tempo pára, o vento cala, o peito suspende. Até que ela atinge o chão. Abro os olhos.

domingo, 3 de outubro de 2010

entreinstantes

Respiração longa é sempre sinônimo de frases curtas. Hesitação. O gesto insistente que percorre o cabelo, descuidado e nervoso, expressa o que faltou às palavras. Os olhares que se cruzam na velocidade do bater de asas, incertos. Mas mesmo na penumbra nenhum movimento passa despercebido.


O primeiro beijo é a única promessa que se cumpre no exato instante em que é proferida.